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Sobre a extinção: o outro lado da porta

por Sergio Zabalza con la colaboración de Juan Jorge Michel Fariña

Um por um, estamos todos nos tornando sombras. É melhor passar corajosamente para aquele outro mundo, na plena glória de alguma paixão, do que empalidecer e murchar tristemente com a idade. Quanto tempo você trancou em seu coração a imagem dos olhos de seu amante quando ele lhe disse que não queria viver. Nunca me senti assim por nenhuma mulher, mas sei que tal sentimento deve ser amor. Pense em todos aqueles que já existiram, desde o início dos tempos. E eu, transitório como eles, também penetrando em seu mundo cinzento. Como tudo ao meu redor, este mundo sólido que eles criaram e viveram está se contorcendo e se dissolvendo. A neve está caindo. Caindo naquele cemitério solitário onde Michael Furey está enterrado. Caindo suavemente pelo universo e caindo levemente, como a descida de seu fim último, sobre todos os vivos e mortos.

James Joyce (monólogo final de Gabriel Conroy, em Dubliners, citado por Almodóvar em The Room Next Door)

Quando alguém entra no cinema para ver “The Room Next Door”, espera que o filme trate da eutanásia, da morte digna e de outras questões sérias e urgentes da bioética tradicional. Por se tratar de um filme dirigido por Pedro Almodóvar, estamos dispostos a assistir uma grande obra. E não nos enganamos: é um filme admirável e requintado.

Porém, não se trata tanto de eutanásia ou de morte digna, se por isso entendemos o procedimento pelo qual um ser humano concorda com a decisão de pôr fim ao sofrimento causado por uma doença incurável. O filme vai além. Talvez além do que o próprio Almodóvar chegou a perceber de sua obra.

Na verdade, é aí que reside o talento do artista, que, como indicou Freud, sabe extrair das suas fantasias inconscientes o material para as suas obras. Um material que por trás da imagem ou história explícita carrega sempre ressonâncias não tão evidentes.

O quarto ao lado aponta para algo mais do que a experiência de acompanhar alguém que decidiu acabar com a dor. A encruzilhada para a qual o filme nos lança é o triste espetáculo de testemunhar a vertiginosa deterioração do planeta tal como o conhecemos até agora.

A paisagem natural que rodeia a casa onde decorrem esses dias tão especiais dá-nos uma pista nesse sentido. A paisagem é quase outro personagem do filme. Uma enorme obra visual que faz brilhar a natureza, sejam árvores, plantas, frutos, corpos, rostos, costas, mar, chuva... E a neve, presente numa passagem das histórias de Dublin é citada por James Joyce em mais de uma ocasião ao longo do filme [1]. E não por capricho ou acaso. Este ambiente sintoniza a vibração pela qual a morte deixa de ser “a vilã do filme” e dá à vida a cor da dádiva e da gratidão.

Com este pano de fundo, Almodóvar oferece-nos todas as pistas para formular uma bioética do caos contemporâneo. Assim a carreira de Martha como correspondente de guerra; a relação com a filha e a sua peculiar escolha vocacional. Daí a referência à Bósnia e a outros locais do horror humano. Isso explica o diálogo entre estas duas mulheres que, entre muitas outras experiências, estiveram – cada uma em seu momento – com o mesmo homem: um especialista em alterações climáticas que dá palestras sobre o desastre que afeta a saúde do planeta.

O fato é que a presença ocasional desse personagem masculino amargurado e derrotado faz com que – num diálogo sublime – Ingrid expresse, a partir de sua experiência singular, um ponto chave e surpreendente. Como e onde nos posicionarmos diante do crime que os seres humanos estão infligindo ao planeta e, afinal, a si mesmos.

Poderíamos concluir dizendo que a loucura (sem metáfora) que o planeta sofre hoje, diante da negação da catástrofe climática e da guerra, coincide com a rejeição visceral da nossa condição finita. Ao ignorar todos os limites, a vida torna-se um bem de consumo. Estamos no quarto ao lado. E não sabemos de que lado da porta.

Revisão estilística do português por Lazslo A. Ávila



NOTAS

[1A história "The Dead" de Joyce, cujo monólogo final incluímos como epígrafe deste artigo, funciona como mise en abyme. A expressão francesa “mis en abyme” é um conceito que se refere a uma obra dentro de outra, quando a segunda estabelece um diálogo com a primeira e lhe lança uma nova luz. Um filme dentro de um filme, uma peça dentro de outra – como a famosa cena dos comediantes de Hamlet, que acaba revelando o assassino do rei. Neste caso, uma passagem literária dentro de um filme, para nos convidar à reflexão sobre o sentido da finitude da vida.

Película:No quarto ao lado

Titulo Original:La habitación de al lado

Director: Pedro Almodóvar

Año: 2024

Pais: España

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